Doentio

paranóias de um amor enfermo


“In his mind, I found, devotion and acceptance far superseded curiosity or fear”.

Anne Rice (Pandora – News Tales of The Vampires, Cap. 11)

Doentio

Os teus dedinhos mansos no meu cangote,
levianos, roubaram o fôlego de mim.
Sem ânimo no íntimo do chamego,
desde então, só me resta o arquejo
e a tosse mesmo ao invés do sopro no fagote.

Nestes pobres versos a aragem é o mote.
Mas baforada pela manhã assim
retê-la não me faz o estilo.
No tempo certo deste corpo esguio
um carnal vento, porém, de amor e de sorte.

Tipo uma brisa morna num abraço forte.
Deixada mansa à margem de um sim.
Do teu, enfim, quando eu perguntasse:

Queres silêncio ou a razão do meu impasse?
“Sim”.

II

Surpreendendo-me a face ruborizada.
Como ela pode dizer sim ante ao canalha?

Eu havia feito tudo certo garanto!
Como ela não viu o ódio carmesim
soprado a tempos remotos em mim?

Eu a presenteei com flores de origami.
Não viu o eremita a esmo
exibido porco, sequelado coitado?

Fui honesto sobre a realidade do esguio!
Desprezado pela malta
baixa, média, alta…

Sobre o empenho em aprimorar a família.
Não viu o vagabundo astuto?
E nem no aculturado um parasita?

Sobre a dedicação e fidelidade às ambições.
Nada havia de consciência social
muito menos política…

Sobre os valores que cultivava.
Sobre as pessoas que admirava!
Sobre a rotina que desfrutava.

E não viu o pobre enfermo?

III

“Sei que fostes capaz de me iludir.
Por isso o que mais quero é poder viver
e contemplar a dor que podes infligir n’outrem”

“Não penses no ‘sim’ meu amor,
só quis descontar os efeitos da tua fraude primeira.
Atente para o meu vigor ao te fazer sofrer”

“Aliás, farias-me ver além do mau?
O sofrimento em si mesmo?
Quero apreciar e apenas isso.
Sei que manifestas bem o significado
daquilo tudo que há dentro do nosso vazio”

“Em troca o teu rijo poderá atravessar em mim.
Mas apenas nas manhãs de domingo ou sábado.
E aos olhos de algum desconhecido enfermo”

“Minha ostentação à frente do teu traço tratante
promove bem tua própria barganha, não?
E só deixo isto, por fim, na ordem do dito,
porque sei que você não tem escolha”

Ressentido, implorei por um chamego
naquela manhã de segunda-feira.

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Rafael Picanço, 1 de Maio de 2012.