Sobre o determinismo: instrumento evangelizador ou científico?

filosofia de boteco


Um instrumento evangelizador não resiste a um escrutínio filosófico feito com zelo. Isso significa que tal instrumento, embora possa estar sendo habilmente utilizado no sentido do convencimento, ou retórica de menor grandeza, se mostrará inconsistente, incoerente, ilógico, isto é, se mostrará inadequado em algum nível de análise filosófica: conceitual, lógico, histórico, estético, epistemológico, ontológico, e assim por diante. Um instrumento científico, entretanto, deve ser capaz de suportar tal escrutínio ao ponto de manter-se coerente no nível de interesse do filósofo (da ciência).

Devo admitir, minha especialidade não é filosofia. E bem conhecendo as limitações do empreendimento científico ao qual me dedico, suspeito que outros cientistas mundo afora, que não tem o tempo para se especializar em filosofia paralelamente, assim como eu, acabam caindo na vala comum do determinismo como “instrumento evangelizador”. O objetivo do presente texto é, na medida do possível, escalar o máximo possível para fora de tal vala, e apresentar uma interpretação do determinismo como instrumento científico. O assunto será tratado em um nível epistemológico, e aqui convém perguntar: o determinismo pode ser testado empiricamente?

O demônio de Laplace

O determinismo do matemático, astrônomo e físico francês Pierre Simon Marquis de Laplace (1749-1827), frequentemente é ilustrado por meio do seguinte “experimento mental”:

“Une intelligence qui, à un instant donné, connaîtrait toutes les forces dont la nature est animée et la situation respective des êtres qui la composent, si d’ailleurs elle était suffisamment vaste pour soumettre ces données à l’analyse, embrasserait dans la même formule les mouvements des plus grands corps de l’univers et ceux du plus léger atome; rien ne serait incertain pour elle, et l’avenir, comme le passé, serait présent à ses yeux.”

“Uma inteligência que, em um dado instante, conhecia todas as forças pelas quais a natureza é animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se de fato fosse suficientemente ampla para submeter esses dados a análise, abraçar na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do átomo mais leve; nada seria incerto para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente a seus olhos.”

1814, Essai philosophique sur les probabilités

Evidentemente, trata-se de uma metáfora. As metáforas tem limites e nem sempre transmitem as ideias planejadas por aqueles que as utilizam. Ressalto que não é meu objetivo aqui afirmar que ele disse ou quis dizer isso ou aquilo, mas apenas interpretar o referido trecho. Pois bem, o Demônio de Laplace procura ilustrar:

  1. um princípio cumulativo, quanto mais dados, melhor será a predição;

  2. uma metafísica, uma visão de mundo que leva o princípio ao limite e o extrapola para relações de necessidade entre todos os eventos, sem afirmar e nem negar se tal mundo pode ser conhecido por humanos.

Será conveniente considerar que “mais dados” tanto significa a) maior volume de dados quanto b) melhores métodos de análise desses dados.

O princípio é testável.

Não apenas testável, o princípio tem sido fundamental para o floresencimento de diversas tecnologias de ponta. Áreas como o aprendizado de máquina (machine learning), a mineração de dados (data mining), dentre outros campos intimamente ligados ao chamado Big Data, possuem como fato o aumento preditivo dos modelos por meio do aumento da base de dados. Frequentemente, o aumento da base de dados é acompanhado de uma sofisticação dos métodos de análise. Facebook, Google, empresas que fornecem serviços de GPS, os esforços empreendidos para a predição do tempo, predição de doenças genéticas, são apenas alguns dos exemplos vivos e em plena atividade que atestam a validade de tal princípio.

A metafísica não é testável, mas também não importa.

Isto é, para ser determinista basta o princípio. A metafísica é opcional. Crio aqui uma prioridade do princípio sobre a metafísica tendo em vista sua origem especulativa. Isto é, se de fato a inteligência fosse, ela seria, mas de fato a inteligência não é. O determinismo como premissa fundamental sobre a relação causal de todos os eventos, suspeito eu, é no máximo a metafísica do cientista persistente. Arrisco aqui, em primeira mão para você, uma definição precisa que irá unificar todas as ciências no planeta:

o determinismo (sua metafísica) é, em última instância, um conjunto de regras que aumenta as chances de ocorrência de cientistas persistentes no mundo. Continue a coletar que um dia você chega lá.

Algo como estar fazendo o que é certo, mas pelos motivos errados.

Um diálogo non-sense

Tal metafísica faz o Demônio de Laplace se assemelhar ao dragão na minha garagem:

H: Quer dizer que há relações de necessidade entre todos os eventos? L: Sim.

H: Como você sabe disso? L: Um Demônio me falou.

H: O que isso significa? L: O Demônio é capaz de ver tudo diante de seus olhos, tempo, espaço e tudo o mais.

H: Você disse T - U - D - O - dó? L: Sim, tudo.

H: Ei, diz pra ele que eu quero ver também! L: Ele disse que não é possível.

H: Como assim? L: Não é possível, pois você não é o Demônio.

H: Mas e se eu fosse o Demônio? L: Se você fosse o Demônio seria possível.

H: Como eu faço para ficar parecido com o Demônio? L: Toma esse número, pede para falar com o Edir. Se ele não estiver, liga para esse tal de Malafaia aqui.

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Rafael Picanço, 12 de Agosto de 2015.